quinta-feira, 18 de junho de 2009

Consequências da Racionalidade Moderna

Na modernidade tudo torna-se quantificável, mensurável, submetido as leis universais que possibilitam o movimento dos corpos. Reduzindo a physis tudo torna-se possível de ser decomposto fisica-quimicamente e decifrados matematicamente. A totalidade do ser humano abrange não mais sua subjetividade, mas esta só pode ser entendida em sua materialidade mensurável empiricamente.

A tarefa de construção de uma ordenação que correspondesse a uma totalidade, sendo que a condição humana se enquadra na possibilidade, regularidade em bases antropocêntricas exigindo no homem moderno a suspensão de qualquer telos meta-humano. Agora se faz mais do que nunca ascender à elaboração de um método para a busca do conhecimento e da verdade, caracterizando-se como científico. É a conceitualização que possibilita universalizar as descobertas, que estabelece leis e princípios determinantes da realidade, que ocorre a superação das crenças e superstições da história das civilizações.

Em contrapartida, essa moderna concepção de sociedade organizada racionalmente que preparava a humanidade para o progresso civilizacional, revelou-se com um profundo anti-humanismo. A rejeição de toda valoração e qualquer princípio moral, criou um vazio que foi preenchido pela idéia da utilidade social. O homem passou a ser um individuo objetificável.

O SENTIMENTO DO SEM SENTIDO

A decadência da modernidade transformou-se no sentimento do sem sentido, de uma ação que não aceita outros critérios que os da racionalidade instrumental. Toda subjetividade deveria ser descartada pela visão racionalista do mundo em uma ação puramente técnica pela qual a racionalidade é colocada ao serviço das necessidades.


Com o auto-desenvolvimento da sociedade moderna houve a substituição da responsabilidade moral por responsabilidade técnica, por isso a tecnologia da separação e segregação promovia a indiferença. Os crimes contra a humanidade eram justificáveis e reduzido pelo cálculo da autopreservação. Segue-se uma lógica da apreensão de ser eliminado que acarreta no exterminio do suposto agressor; esta racionalidade roubava a vida humana da sua humanidade.

Essa modernidade no seu alto grau científico, mostrou que colocar a autopreservação acima do dever moral não pode ser entendido como inevitável e nem responsabilizar as mesmas ações por supostos sentimento de ameaça.

A conceitualização do Outro com argumentos depreciativos servem para despertar os medos arraigados, a repulsa e aversão a serviço do extermínio, mas também coloca o Outro em uma distância mental na qual os direitos morais não são mais visíveis, por isso, o Outro não é mais objeto de avaliação moral.Nessa cosmovisão racionalista, declarar que uma categoria específica de indivíduos não tem lugar na ordem projetada, com o pressuposto da pureza, é dizer que essa categoria está além da redenção, ou seja, ela não pode ser reformada, adaptada ou forçada a se adaptar.

Violência Burocrática

A utilização da violência torna-se eficiente quando os meios são submetidos aos processos instrumentais e racionais que, por conseguinte se dissociam da avaliação moral. Todas as burocracias conseguem facilmente essas dissociações, do mesmo modo, isso é possível através da meticulosa divisão funcional do trabalho e toda graduação e subordinação hierárquica e também pela substituição da responsabilidade moral pela técnica.

Essa divisão do trabalho resulta numa determinada hierarquia de comando, cria determinada distância entre a maioria dos subordinados e os seus comandantes. Essa distância prática e mental significa que a maioria dos funcionários da hierarquia burocrática pode dar ordens sem pleno conhecimento de seus efeitos, talvez não sendo nem possível visualizar esses efeitos. Todos esses efeitos de distanciamento criados pela divisão hierárquica do trabalho são radicalmente ampliados uma vez que a divisão se torne funcional.

O impacto psicológico desse distanciamento é profundo e de longo alcance. Uma coisa é cuidar do fornecimento regular de aço a uma fábrica de bombas. O diretor de suprimento da fábrica não precisa pensar no uso a que se destinam as bombas.
O segundo processo para diss­ociação é a conseqüência final do distanciamento, ou seja, a substituição da responsabilidade moral pela técnica é possível através da separação funcional das tarefas. Não há envolvimento direto com as vitimas, do mesmo modo que cada pessoa dentro da hierarquia de comando é responsável perante seu superior imediato e por isso está naturalmente interessada na opinião dele e na sua aprovação do trabalho. Uma vez distanciados, os funcionários, graças à complexa diferenciação funcional dentro da burocracia, dos resultados finais da operação para o qual são os promotores, suas preocupações morais se concentram completamente na boa execução da tarefa a sua frente.

Como no Imperativo categórico Kantiano, o importante não é apenas a boa vontade em fazer a ação, nem o fim da mesma, mas, sobretudo o cumprimento do dever, diante disso, para poder ser é necessário que o indivíduo cumpra o dever sem interpelação. Aqui a moralidade se resume ao comando para ser um trabalhador bom, eficiente e diligente especialista.

A vítima é sempre transformada em objeto e como sempre se sucede aos objetos da ação, não importa mais se são humanos ou seres inanimados. O que interessa é a delimitação dessas fronteiras de espaço e tempo, para controlar e administrar o objeto.

“Encontrar-se um homem é ter que manter-se ante um enigma” (LEVINAS). Quem é humano, demasiado humano que se torna objeto? Desvelou-se a força o humano? Conscientemente arrancou-se o humano de sua humanidade...

ESTÉTICA E PUREZA

A sociedade como objeto de planejamento com projetos conscientes. A sociedade pode e deve ser refeita, forçada a conformar-se a um plano geral cientificamente concebido. Além disso, a dimensão estética nesse projeto na tentativa de esclarecer o que é o mundo ideal a ser criado em conformidade com os padrões de uma beleza superior. Uma vez constituído, será imensamente satisfatório, como uma obra de arte perfeita e total, como anteriormente o filósofo alemão Hegel idealizava. Essa obra sublime não permitiria nenhum acréscimo, redução ou alteração, pois não se poderia melhorar algo que é perfeito.

O sonho de uma pureza absoluta seria a essência do racionalmente ordenado e tudo o que corresponde à mesma ordem, sintetizaria a concepção de um mundo puro e perfeito. A sujeira vista como desordem não pode se enquadrar nessa visão de mundo, o único destino seria o aniquilamento daquilo que era imperfeito disforme e desorganizado. A modernidade manteve a concepção puramente racional da realidade, a ciência e a técnica foram a força propulsora do progresso da humanidade, tudo o que fosse obscuro, que ficasse “fora do lugar” harmonioso, da matematização da natureza deveria ser administradamente pela precisão da técnica, posto para fora ou eliminado, pois não se ordenava ao mundo social ajustado da modernidade.


Especificamente o nazismo, ao primar por impelir a tendência totalitária a seu extremo radical e caracterizar-se como um fenômeno da modernidade, exalta-se com o problema da pureza, sendo esse ressaltado de forma racional, o que culminará com a preocupação com a pureza da raça. Nesse caso a sujeira caracterizar-se-á pelo indesejável e incompatível povo judaico com sua arte degenerada bolchevista e a pureza será o ariano puro com sua arte grego-renascentista. A sujeira – judaísmo e arte abstrata (degenerada) – não pode ser afastada ou despejada para fora do alcance da pureza, pois ela continuará infestando outros ambientes e pervertendo a ordem racional das coisas. A única saída será o processo de higienização no Departamento de Higiene Racial e Planejamento Social Nacional-Socialista, a qual deverá remover qualquer resquício de infestação ou imundície. Indubitavelmente essa sujeira acabará entrando pelo portão do “Arbeit macht Frei” e saindo silenciosamente pela chaminé em forma de fumaça.


A busca da pureza moderna expressou-se com a ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna se expressa diariamente com a ação punitiva contra aqueles que não podem se encaixar as formas puras do consumismo nos grandes centros e lojas, que não são possíveis de serem enquadrados nas formas lógicas da sociedade de consumo e da livre competição. São os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagabundos e indolentes que merecem ações punitivas a fim do afastamento desses intrusos e forasteiros da ordenação, lógica e racional da fantasia da pureza pós-moderna.

Tanto na modernidade, quanto na pós-modernidade a “impureza” no centro da ação punitiva é a extremidade da forma incentivada como pura, a extensão até os limites do que devia ter sido, mas não podia ser, conservou-se em região fronteiriça. Na concepção moderna caracterizada pela instrumentalização da razão, com um ideal de pureza total a fim de fazer imperar a ordem das coisas, que visa separar aqueles que não se enquadram nas formas puras do pensar, faz brotar categoricamente fenômenos análogos ao Holocausto, isto é, da completa desumanização da condição humana.

EUGENIA: uma boa linhagem?


A Eugenia adquiriu status científico e objetivou programar um método de seleção humana baseado em premissas biológicas. A busca pela valorização da beleza e a idéia de saúde física e mental, a questão da boa aparência e da eficiência para o mercado de produção e serviços estariam ligados ao resultado do aperfeiçoamento da espécie humana.

O pai da Eugenia, Francis Galton afirmaria a necessidade do aperfeiçoamento da espécie humana através da seleção natural ou artificial. Selecionavam uma “boa linhagem” de melhores exemplares humanos, aqueles que demonstravam ter as características mais adequadas para transmitir à geração seguinte e incentivá-los a reproduzirem-se, de forma a melhorar a espécie humana. Através da Eugenia se incentivava casamentos minuciosamente selecionados, nesse sentido a ciência médica assistia as famílias destinadas a povoar a sociedade perfeita. O médico passa a ser um elo importante entre a saúde e a beleza, ele é o responsável pela dimensão estética da humanidade, pois é de seu dever a purificação da raça. E, não obstante, se postulava que a inferioridade também era hereditária e a única maneira de livrar a espécie da degeneração seria através da esterilização, consentida ou não. Previa métodos como da eutanásia, do infanticídio e do aborto.

Com a descoberta da microbiologia por Louis Pasteur que repercutiu intensamente na medicina e na sociedade, suas idéias passam a ser fundadoras da saúde pública e da medicina social. A invenção das vacinas assim como outras técnicas curativas para as doenças epidêmicas desse período tiveram o papel de biologizar a política ao ditar normas de curar e regras higiênicas. Surgiram os médicos higienistas e as políticas sanitárias. Conseqüências? Desumanização do Outro. Propomo-nos agora, percorrer o caminho do bem além do ser, um caminho no chão da antropologia e da ética.

RACISMO E CIENTIFICISMO


Impossível é falar de racismo na modernidade sem ligá-lo diretamente ao avanço da ciência moderna, da tecnologia moderna e das formas modernas de política estatal. Como tal o racismo é um produto moderno na sua estrutura e desenvolvimento. Por isso a modernidade não criou o racismo, mas o tornou possível.

Segundo o estudo detalhado de Pierre-André Taguieff, o racismo é sinônimo de heterofobia (ressentimento da diferença). Ademais o racismo é a seu ver universal, usa-se teorias e bases lógicas para o ressentimento, ele é pensado logicamente e se impõe. O racismo é como uma reação natural à presença de um estranho desconhecido num grupo de forma que este seja à primeira vista, analisado de forma intrigante e diferente dos demais. A primeira resposta a esta estranheza é a antipatia que pode levar à agressividade. Essa universalidade é espontânea e não precisa de uma investigação, nem de uma teoria para legitimar a dúvida em relação ao forasteiro.

Quando começa a inspiração da legitimação contra o individuo e nasce uma mobilização política, encontra-se já num racismo racionalizado. Essa transformação ocorre quando se fornece teorias que criam bases lógicas para o ressentimento deliberado. Nesse caso a alteridade repelida é representada objetiva e racionalmente como perigosa, é vista como uma ameaça ao bem estar do grupo ressentido. Já o racismo mistificador, pressupõe os outros níveis de racismo como inferiores, pois se distingue pela elaboração de argumentos científicos e estritamente biológicos para legitimar sua concepção de raça.

Numa sociedade em que são visados o máximo melhoramento e funcionamento das condições humanas, com a reorganização das atividades com bases arraigadas numa racionalidade, o racismo expressa a certeza de que uma parcela de seres humanos é incapaz de ser incorporada à ordem racional. Num mundo em que progressivamente rompem-se barreiras e limites, e com a manipulação científica tecnológica e cultural, o racismo proclama que certas falhas de determinada categoria de pessoas não podem ser removidas ou ratificadas, que elas estão além da reformação e assim permanecerão para sempre. Assim um crime é punido e um vício só pode ser eliminado e nada mais.